A goteira
Alguns problemas não podem esperar — Novembro de 2020
Os pés molhados eram algo novo. A rotina com a qual ele estava acostumado era diferente. Em um dia comum, a sensação que teria por volta desta mesma hora é a de um liso e seco azulejo se arrastando sob seus dedos.
Em vez disso, uma poça um pouco gelada e pegajosa o circundava, crescendo mais e mais. De tantos em tantos segundos um pequeno “tlup” tornava a poça maior. Olhar para o teto não foi tão revelador assim, mas confirmou o que ele achava que seria: “tlup, tlup… drup”, de uma mancha disforme no gesso acima de si pingava algo que parecia ser água, mas não tinha certeza. Era difícil ter certeza com a pouca luz que atingia seu quarto pelo fim da madrugada.
Carlos acrescentou a goteira à sua extensa lista mental de problemas e foi se arrumar. Seu trabalho na lanchonete não ligava para qualquer tipo de encanamento quebrado em sua casa ou seja lá qual era a causa do problema. Ele tinha que chegar cedo, provavelmente para fazer os salgados de ontem parecerem novos e os novos parecerem comestíveis. Tentou tomar um banho, mas do chuveiro só conseguiu ouvir “drip, drup, tlup”, quase que em sintonia com o barulho do quarto, que ficava tão longe do banheiro quanto era possível em uma quitinete econômica. “Tanto faz, dentro da lanchonete só dá pra sentir cheiro de chapa queimada e casca de laranja espremida”, pensou. “Mais banho ou menos banho, o gosto do lanche é igual”. Ainda assim, teve que sair de casa com sede.
O dono do estabelecimento estava esperando com uma caixa de limões nos braços. “Carlos, seu escroto, tá atrasado!”, sussurrou, evitando que a única e solitária freguesa presente o escutasse através do balcão. Ele continuou, já um pouco mais alto: “Vai já começar a trazer as caixas do carregamento que acabou de chegar. É início de semana, daqui a pouco vai ter gente chegando com vontade de tomar suco e cadê que vai ter fruta pra fazer?”.
A resposta veio em sua garganta seca, mas voltou, o deixando insatisfeito. Seu patrão, Getúlio, era um completo babaca, mas o que ele tinha para dizer só sairia em uma altura que a cliente certamente conseguiria ouvir. Parou no filtro de água para se hidratar antes de seguir as ordens do capitalista.
Encontrou Pablo nos fundos, movendo as caixas de frutas. “O cara de cuia tá puto contigo já?”, disse o trabalhador.
O atrasado respondeu: “Sim, o chifrudo acha que a única cliente que a gente tem liga se eu chego dez minutos depois do horário”.
O lugar não era tão grande, então deviam ter tomado cuidado ao falar. Da frente do estabelecimento conseguiram ouvir: “Vão trabalhar, seus cornos!”. Ironicamente, o patrão poder dizer isso significava que a cliente já teria ido embora.Logo, eles teriam ainda menos motivo para se apressar. Ainda assim, Carlos se juntou ao colega de trabalho e, em pouco tempo, a carga estava devidamente armazenada.
Carlos ficou no balcão à espera dos fregueses que, segundo o chefe, supostamente viriam no dia. Não conseguia se concentrar em nada. A goteira de sua casa se fazia presente nos seus pensamentos o tempo todo. A refresqueira atrás de si, a pia onde lavavam as louças, o estalar da língua de seu colega de trabalho, tudo isso criava um “tlup, tluc” constante em seus ouvidos. Tentou focar nos seus arredores, se prender às coisas presentes na loja. Mas isso se mostrou quase impossível, até as pás do ventilador velho já não giravam o suficiente para afastar o som. “A qualquer momento isso pode cair. De repente os clientes voltariam mais se não tivessem medo de receber uma hélice na cab… tlup”
No fim do expediente, lá para as 5 da tarde, voltou ao estoque para reorganizar as caixas, que segundo Getúlio estavam todas “jogadas de qualquer jeito nesse caralho!”. Era de fato um homem exigente, “Limão é do lado direito, junto com a laranja, e abacaxi do esquerdo, já falei mil vezes! E anda logo com essa merda”. A paciência de Carlos já estava começando a se extinguir com o patrão. O pior era pensar que não teria sossego em casa, com a maldita goteira constantemente soltando seu “tlup”, que o acompanhava onde fosse. Juntando isso aos desaforos de seu empregador, sua esperança de ter paz nesse dia já tinha ido embora.
Pablo tentava não se abalar com a situação. Era um cara tranquilo, difícil de se irritar, mas o patrão era seu ponto fraco. “Que diferença faz se a laranja tá de um lado ou de outro?”, resmungou, “Velho ranzinza desgostoso da vida”.
Estavam quase terminando o serviço quando ouviram Getúlio gritar, sua voz abafada pelas pilhas de caixas: “Aaaaaaghhh!” e, então “TUNC!”. Se olharam com rostos assustados e saíram do armazém.
Ao chegar na frente do local, Carlos se deparou com uma figura se contorcendo debruçada sobre a mesa onde no início do dia havia uma cliente. Era Getúlio. E ao seu lado, no chão, encontraram o pesado ventilador, com as hélices ainda girando devagar. Da testa de seu Getúlio pingava um liquido rubro e viscoso, em um ritmo desconfortavelmente familiar.
Tlup, Tlup…
Tlup.
…
No dia seguinte foi o Sol que o acordou. O gotejar constante perto da cama não lhe deu tranquilidade por um momento sequer, o “drip, drip… drip” o seguiu em seus sonhos. O líquido da goteira escorria até chegar em seu subconsciente, como uma cacofonia que reverberava pelas mais profundas camadas de sua mente. Não conseguia lembrar o barulho que a ambulância que levou seu Getúlio fazia, nem de como era o som de seu toque de celular. Em sua mente agora só estava presente aquele infernal “drip, tlup, drip”, como se uma torneira mal fechada estivesse atarrachada em seu crânio. A poça em seu quarto agora formava um pequeno lago em forma de feijão, “drup, tlup, tlup”, sem parar ou descansar, crescia e crescia, respingando em seu armário e em sua sapateira. Já não suportava mais aquilo. Mesmo se sentindo exausto, tinha que se livrar da goteira, então mandou mensagem para um encanador conhecido, pedindo para que fosse o quanto antes para sua casa. Ele sabia que isso iria demorar, então saiu do quarto para tentar dar um jeito no problema por conta própria.
“Deixa eu só encontrar ela aqui”, disse Alana, a síndica, mexendo na gaveta de chaves, cheia de peças de metal enferrujado. “Tem anos que ninguém mexe nos registros, tá um rolo enorme isso aqui, cara… Acho que é essa? Vamo lá testar” . Soltou um grunhido leve enquanto não conseguia encaixar a chave, até que “tunc”, a caixa que envolvia a bomba d’água abriu e caiu, com as dobradiças rangendo. “Ninguém mais reclamou de problemas com a água, mas não deve ser nada demais. Bom, tudo parece estar ok, vou fechar o registro e você pode tentar consertar o cano ou sei lá o que é o problema”, disse ela, educada, disfarçando o desconforto do cheiro ruim de Carlos. Ele não era particularmente limpo, mas não costumava ficar tanto tempo sem banho, e suas axilas e virilha estavam vermelhas com o suor e muco acumulados por dois dias. Alana não quis imaginar o quão fedidas estavam as partes íntimas do inquilino.
Não tinha uma marreta, então teve que improvisar algo para quebrar o gesso do teto. Um liquidificador velho arremessado contra ele pareceu que serviria, mas a rachadura que se formou depois do lançamento estava longe o bastante da mancha para perceber que não tinha sido uma boa ideia. Xingou baixo, puto da vida, e a goteira persistia “tlup, tlup, drip… tlup”, caçoando dele, criando um fluxo rítmico do teto ao chão que parecia atravessar sua dignidade ao meio.
Tirou a camiseta e a amarrou em volta do rosto. Puxou um socador de alho da gaveta ao lado do fogão, subiu em uma cadeira e começou a golpear violentamente o gesso, cada vez mais forte, conforme as gotas de água atingiam sua testa ensebada e suja e escorriam por seu braço direito, enquanto o esquerdo oscilava para frente e para trás a cada golpe, de forma a manter o equilíbrio, com o punho cerrado. Quando sentiu o gesso ceder, cobriu os olhos com a mão livre e deu uma pancada final. Virou para baixo o rosto coberto por pano e dedos quando sentiu um jorro de água sair do recém criado buraco no teto. Sua nuca estava agora coberta por uma mistura de gesso, água e sujeira, que escoava pelas covas dos tendões de seu pescoço, passando por seu peito e por sua barriga redonda, sujando sua bermuda e atingindo o chão, “Ploc…” e então “Tlup, drip, drip, drip…”
Arte por Toré
Ele era agora parte da goteira, não mais apenas formada por água e detritos, mas também em grande parte por frustração. Aquilo havia sido o mais próximo que teve de um banho que tinha tomado em dois dias.
Do buraco que se formou via apenas um breu. O vão no teto era delimitado por uma escuridão quase palpável, para o que a má iluminação do quarto contribuía bastante. Ligou a lanterna do celular e apontou para o vazio. Viu um cano, parte da parede interna e sombras formadas pelas bordas rachadas da boca recém-formada no teto.
E de fato parecia uma boca.
O cano passando através do teto era um lábio retorcido e úmido, e o gesso quebrado formava algo semelhante a dentes pontudos, dos quais a água agora escorria lentamente, como uma baba viscosa de alguma besta. Aquela visão o assustou. Algo ali não estava certo, não mesmo. Não conseguia objetivamente ver algo perigoso ali, mas as formas, os arranjos dos objetos acima de si, tudo parecia ameaçador, quase visceral. Contemplou esse cenário, parado e rígido, por um tempo que não saberia determinar. Então, finalmente, conseguiu afastar essa visão e voltar para o problema do mundo material, a verdadeira questão: o que de fato causava a goteira.
O cano estava velho e enferrujado, mas parecia inteiro. Ele percorria o teto, meio dentro e meio fora, sumindo em duas das extremidades do buraco, que não coincidiam com os locais dos quais a água agora caía. “Tlup”, qual era a origem do problema, afinal? “Drip, tlup”, o buraco agora o chamava, ele tinha que olhar dentro dele se quisesse saber de onde vinha o vazamento, e não achou que iria conseguir sozinho.
Chamou Alana de novo, morrendo de medo, ainda sem saber direito o porquê. Usou a desculpa, não totalmente falsa, de que precisava de uma escada. De fato, a cadeira que ele estava usando não serviria, era baixa demais. Por sorte, Alana era muito gente boa e se dispôs a ir junto tentar dar ela mesma uma olhada no problema, torcendo para que não fosse algo que se espalhasse pelo condomínio.
Chegando no apartamento de Carlos se espantou com a bagunça colossal, que não esperaria que um ser humano conseguisse fazer, e não era apenas por conta do buraco. O lugar era um verdadeiro chiqueiro. Ignorando a falta de higiene do inquilino, foi até o quarto dele. A casa de Carlos era perigosamente suja, e o quarto estava particularmente semelhante a uma fossa preenchida com argamassa. O que a assustava mais, no entanto, era que a origem do problema não estava exatamente clara. Ela via uma cadeira enlameada no meio do lugar e, em cima dela, no teto, um buraco. Mas as coisas não pareciam se encaixar. Onde estava a água?
Como uma brincadeira de mal gosto, a goteira parecia ter parado. “Tava aqui agora mesmo”, Carlos explicou, “Pingava direto do teto, ficou assim desde ontem. Pode olhar ali, vai ver que tá tudo molhado”.
Alana subiu na escada, com a lanterna do próprio celular ligada. Olhou dentro do buraco e se espantou: Estava sujo, sim, mas tudo parecia seco como sal iodado.
“Não tem nada aqui, Carlos. O cano está perfeitamente normal. Um pouco cheio de ferrugem, mas em boas condições, ainda assim, e nada molhado. Inclusive, parece que nunca teve água aqui. Tem certeza que esse problema é recente?”
“Tenho”, respondeu o homem sujo e exausto, “eu acabei de abrir esse buraco.”
A frase não saiu como esperado, passando a Alana a impressão de que o homem havia destruído inadvertidamente seu próprio aposento em um ataque de loucura. “Bom, tá certo”, ela começou, “mas não sei qual é o problema. Tenho algumas coisas pra resolver, então vou indo, mas pode ficar com a escada que eu pego depois”.
A Síndica saiu com pressa. Incrédulo, Carlos subiu para confirmar por si mesmo que devia ter alguma coisa no teto. Adentrou a boca com a cabeça esticada e um dos braços segurando o celular. Vasculhou em todas as direções mas, de fato, tudo parecia dentro do normal: canos firmes, teto sem água, e teias de aranha aqui e ali. Continuou procurando e apertando os olhos, em busca de algo que simplesmente não conseguiria encontrar. Se tinha alguma água ali antes, já tinha desaparecido por completo.
De repente, no meio de sua busca desesperançosa, um som distorcido e gutural surgiu. A adrenalina o tomou por alguns segundos e seu corpo se paralisou, até que a familiaridade do som foi se apossando de sua consciência: era a notificação do celular ecoando pelo grande salão acima do gesso. Tirou a cara do buraco e instintivamente posicionou o celular na direção de seus olhos. Conseguiu ver de quem era a mensagem mas, no momento, não pôde responder: A tela de toque não funcionava com a superfície molhada.
…
Com os compromissos resolvidos, Alana voltou ao condomínio e foi direto para a casa do inquilino, ver se a questão já havia sido resolvida. Chegando lá, viu um homem sentado em um banco ao lado da porta, com uma caixa de ferramentas no colo, onde tinha um braço apoiado.
De onde a síndica e o encanador estavam, conseguiam ver o banheiro trancado no corredor, e o quarto logo adiante.
“Onde ele está?”, perguntou a mulher ao profissional hidráulico. “O problema já foi resolvido?”
O visitante explicou sua história: Disse que mais cedo havia enviado uma mensagem a Carlos dizendo que estava a caminho, à qual o cliente respondeu confirmando que poderia ir. Entretanto, ao chegar encontrou a entrada aberta, mas ninguém presente no local. Só o que viu foi a porta do banheiro trancada. Bateu na porta e ouviu um barulho vago, que interpretou como “estou ocupado”, mas que poderia ser qualquer coisa. Um som estranho indicava que o chuveiro parecia estar ligado, então de início suspeitou que o problema havia se resolvido. Ainda assim, decidiu verificar o quarto, que é onde Carlos disse que o problema principal estava, enquanto o residente não saía. Subiu na escada e olhou dentro do teto. O encanamento parecia estar como deveria, e não viu nem uma gota sequer em lugar nenhum. Ainda assim, viu restos de gesso quebrado e úmido espalhados pelo lugar. Decidiu esperar pelo morador da casa, mas já estava ali há um bom tempo quando Alana chegou.
“Eu não entendo, ninguém mais do condomínio reclamou”, disse a síndica, entrando na casa e olhando ao redor, ficando entre o encanador e o corredor que dava para o banheiro. “Além disso, você mesmo disse que não encontrou nada e que ouviu o chuveiro ligado. Por que não vai para casa?”.
O encanador falou: “Eu não tenho certeza se era o chuveiro mesmo. Parecia ser… eu não sei bem o que, mas eu juro que não era água. Você já olhou o teto do quarto também? Aquilo é macabro, como se o buraco tivesse sido aberto por dentro, com arranhões no interior do gesso e marcas que pareciam… modidas, em alguns cantos do buraco, mas não sei explicar de que forma isso aconteceu. Eu estou com um mal pressentimento, minha senhora”.
Ao que Alana disse: “Bom, eu estive aqui mais cedo e achei tudo normal com o teto mas… O Carlos não estava bem. Na verdade, parecia mais que ele ficou doido e abriu um buraco no próprio teto por motivo nenhum mas… enfim, ele estava muito perturbado com alguma coisa, não sei dizer o que. Mas você não acredita mesmo que tivesse algo no teto, né?”
O encanador abriu a boca para responder quando a fechadura do banheiro destrancou. A maçaneta girou.
A cor do rosto do encanador se esvaiu. Seus olhos arregalados estavam fixos em algum ponto acima dos ombros da síndica.
O encanador não respondeu.
Arte por Aimêe Mothé
Esse conto foi publicado originalmente em 31/10/2020 na GDPânico, coletânea de contos de halloween da GDP UFRJ. Recomendo bastante dar uma conferida, tem vários outros contos ótimos, acompanhados de artes belíssimas feitas por colaboradores da coletânea.
Agradecimentos especiais a Aimêe e Toré, que fizeram artes incríveis para acompanhar o conto, e a Felipe de Barros, que foi o editor do conto. Inclusive, sem a edição do Felipe, o fim da história teria sido bem diferente, e acho que ficou bem melhor na versão publicada.